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quinta-feira, 9 de abril de 2015

O canibalismo Donner (A Caravana Donner)

Boa noite.. me chamo Filipe, escrevo de uma cidade inóspita e fedorenta perto de Porto Alegre.

Sou um grande fã de western, e de tudo relacionado a isso. Nos últimos anos, tenho dado atenção especial a um subgênero conhecido como "Weird West". Um ambiente riquíssimo que mistura horror, sci-fi, mistério e até steampunk com o bom e velho oeste (ha).

Assinei Netflix na semana passada, e uma das únicas coisas no catálogo que me chamaram a atenção foi o filme Ravenous (Mortos de Fome) de 1999. Um filme estranho, confesso que sempre adorei vários aspectos dele, e o assisti de novo. Li algumas das bases pro roteiro e vi um documentário da PBS muito completo sobre a Caravana ou Comboio Donner. Admito que a Wikipedia ajudou muito na ordem cronológica.

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Caravana Donner
A CARAVANA DONNER

Quando o ser humano se encontra em uma situação extrema, muitas vezes é seu lado bestial que toma as rédeas. Sobreviver é o que importa - convenções morais e religiosas perdem o sentido. 

Na metade do século XIX, multidões se lançavam através dos EUA atrás da terra prometida na Califórnia. Esse fenômeno se repetiu anos mais tarde, durante a Corrida do Ouro.

Durante o boom de peregrinos indo até a Califórnia, um grupo se formou em torno de algumas famílias em Springfield (não, os Simpsons não estavam junto), sendo que os mais importantes eram os Reed e os Donners. O nome da caravana se refere aos irmãos Jacob e George Donner, cada um acompanhado de suas famílias e empregados.

Durante o trajeto, outras famílias se uniram a eles, e no fim somavam 87 pessoas em mais de 500 caravanas com muitos provimentos, animais e pessoas. Embora alguns achassem melhor seguir o mesmo caminho que todo o resto já tinha seguido antes, os chefes da caravana Donner deram trela para os palpites de um homem chamado Lansford Hastings, também pioneiro, que dizia saber de um atalho ótimo.

O que ele esqueceu de avisar é que só testou o trajeto 4 anos depois de publicá-lo em cartas e espalhar entre as caravanas; que ele até conseguiu, mas não tinha mais de 500 carroças com ele; ele também podia ter avisado que esse atalho acrescentou mais de 150km no trajeto.

O atalho levava a um canyon, um trecho montanhoso, o deserto de Salt Lake, o Vale do Urso e depois pelas montanhas de Sierra Nevada. A viagem havia sido friamente calculada para que partissem em Junho, no final da primavera (assim haveria pasto pros animais) e chegassem antes nevascas na serra.

Ravenous
Durante a travessia do canyon já passaram um bom trabalho, removendo pedras e abrindo picadas na mata. Levaram duas semanas para atravessar o trecho montanhoso (que deveriam levar 2 dias), e nesse ponto as picuinhas entre os vizinhos de tenda já começavam a surgir. Após uma briga feia envolvendo um relho, o patriarca dos Reed esfaqueou outro homem, e foi expulso da caravana. Seguiu sozinho, apenas com um rifle e alguma comida dados por sua enteada, sem que a caravana visse.

Passando o trecho de pedras, chegaram no deserto de sal. Foi penoso, muitos animais morreram de sede enquanto outros fugiram enlouquecidos pelo calor, os suprimentos começaram a ficar mais escassos; e embora os Donner tentassem administrar a divisão dos alimentos, as famílias começaram a se dividir em "panelinhas".

Esses subgrupos acabavam seguindo em ritmo diferente dos demais, o que no final, durante a crise que vem a seguir, deixou a caravana toda espalhada pelo vale. Durante o trecho no inóspito deserto, alguns índios os acompanharam com curiosidade e roubaram algumas cabeças de gado (!!!). Mesmo assim, os Donner contrataram dois nativos como guias, Luis e Salvador.

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A PRIMEIRA REFEIÇÃO

Quando chegaram ao último trecho montanhoso, em Outubro, começou a nevar no vale do Urso. A maior parte das famílias ficou no sopé, ao longo de um lago congelado, e se preparou como pode para o inverno. Usaram restos de antigas cabanas de outros peregrinos e construiram barracas rústicas com toras e usando o couro do gado para vedação e como telhado. Não havia janelas nem portas, apenas um buraco por onde se entrava e saía.

George Donner abriu um talho na mão quando cortava lenha, e por orgulho (ou por que não havia mesmo o que fazer) deixou assim. Quando foi resgatado, cerca de 5 meses depois, seu braço estava tão gangrenado que ele não podia se mover.

Os mantimentos eram motivo de brigas e conforme o frio aumentava, a comida diminuía, até um ponto em que acabou. Muitas crianças trocavam de cabana e acabavam sendo cuidadas por outras pessoas, e famílias inteiras migravam para outras casas buscando qualquer alento. Diversos grupos tentaram fazer expedições ao cume, outros para o caminho de volta, mas todos acabaram desistindo por conta de muros de neve e da extrema dificuldade em se mover. As famílias passaram a fazer uma sopa grossa e hedionda usando ossos dos animais, e cozinhavam o couro e o comiam.

Não havia caça, e ninguém sabia como pescar nessas condições. O único que sabia caçar (mais ou menos...) era William Eddy, e ele até matou um urso, mas a carne não durou muito. O único alimento era o couro mesmo. OU...

Muitas das crianças, por ficarem semanas a fio comendo couro, roubavam e comiam cadarços, tiras e cintos dos homens que as resgataram, quase cinco meses depois, tamanho o trauma. O cheiro nas cabanas era insuportável. O couro usado nos telhados estava apodrecendo, e não havia possibilidade de tomar banho ou de se livrar dos dejetos. Quem adoecia apenas esperava até a morte e os cadáveres ficam dentro das cabanas, ou semi enterrados na neve.

Um grupo de 27 pessoas, entre eles Eddy e os dois nativos, saiu em uma última tentativa desesperada de pedir socorro, usando o pouco couro restante para fazer sapatos para neve. O grupo ficou perdido durante mais uma forte nevasca, e aos poucos a ideia de canibalismo começou a ser discutida até se tornar unânime. Só não se decidiam se escolheriam por votação ou se apenas iriam esperar que alguém morresse primeiro.

Dois deles faleceram possivelmente por exposição ao frio, fome e cansaço. Um terceiro, Patrick Dolan, tirou as roupas e saiu correndo peladão pela neve. Voltou alguns minutos depois de sua crise e caiu duro. Os membros do grupo não pensaram duas vezes e começaram a comer tiras de carne de suas pernas. Eddy não quis comer carne humana, mas com o tempo acabou sucumbindo a fome. Os homens evisceraram os três defuntos, fizeram um tipo de charque com os órgãos e os músculos e embalaram para a viagem, cuidando para que ninguém comesse seus parentes.

O grupo considerou matar os dois guias indígenas, que ouviram isso e, espertos, deram no pé.
Para seu azar, se perderam por um mês e ficaram sem comer por nove dias. Quando o grupo os achou, quase mortos, atirou neles e os devorou.

Esse grupo dos "sapatos de neve" foi resgatado antes da caravana Donner, sete sobreviveram e foram essenciais para localizar algumas das cabanas, quando começaram a enviar grupos de socorro.

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O RESGATE

James e Margaret Reed
Lembram do Reed? O que foi expulso? Ele conseguiu seguir o caminho traiçoeiro e chegou no final! Estava bem, quentinho, alimentado, mas sentia uma leve culpa por deixar sua família sozinha la, incluindo sua esposa, seus filhos e enteados. Foram feitas diversas tentativas de resgate. Três grandes expedições deram certo, a primeira buscou cerca de metade dos sobreviventes, na maioria crianças e algumas mulheres. Reed participou de algumas e alguns sobreviventes dos "sapatos de neve" também. 

A segunda expedição foi mais bizarra, onde se viram sinais óbvios de canibalismo. Reed e Eddy participaram dela. Um dos homens que estava na primeira leva de socorristas alegou que, durante o primeiro resgate, uma das mulheres e sua família estava "cogitando devorar o empregado Milt". Reed encontrou o torso fatiado de Milt na neve atrás da cabana.

Mais adiante, em outro acampamento, viram um jovem chamado Trudeau carregando uma perna humana. Quando ele percebeu que pessoas se aproximavam, a jogou em um buraco na neve, onde estavam restos do corpo de Jacob Donner. Sua esposa se recusou a comer a carne do marido, mas admitiu que deu estômago e tripas de Donner para as crianças que estavam sob seus cuidados, mas "foi só pro mais novinho!" (ah bom..). Na mesma cabana estava seu irmão George, com o braço apodrecido e a infecção atingindo o ombro.

Na terceira expedição, em que Eddy participou também, o grupo chegou em uma cabana mais afastada, onde deveria estar a família de Eddy. Um dos sobreviventes, Lewis Kesenberg, confessou que comeu os restos do filho caçula de Eddy, que havia sucumbido ao frio. Eddy jurou matar Kesenberg (e realmente tentou!) quando chegassem na California.

Outros homens acharam na cabana de Kesenberg uma das pistolas de Jacob Donner, algum dinheiro, pertences da esposa dele e tripas e ossos humanos em uma tigela. Tentaram linchar Kesenberg (como se ele fosse o único culpado), mas ele garantiu que ela, ao perceber que iria morrer, lhe sugeriu que guardasse o dinheiro para que seus filhos o usassem. De fato muitos historiadores quiseram o colocar como único vilão na história, mas isso nunca foi provado (assim como muitos dos fatos citados).

Muito se discutiu em torno da veracidade desses testemunhos, sendo que alguns sobreviventes alegaram que não houve canibalismo. Outros, que eram crianças na época, contam que lembrar de momentos em que os adultos admitiam que lhes dariam carne "de gente". Nesse ínterim, além dos diversos relatos dos sobreviventes, alguns historiadores vem tentando entender o que realmente ocorreu no alto da Passagem dos Donner, como ficou conhecida após o incidente.

Uma das sobreviventes, Virginia Reed, enviou uma carta a uma prima, alguns meses depois, contando alguns detalhes do inferno pelo qual passou. Virginia jurou que sua família foi a única a não comer carne humana (aham), e que nada disso devia desestimular ninguém a buscar uma vida melhor na Califórnia.

 Também disse "..nunca pegue atalhos. E se apresse o mais rápido que puder".