Conto |
Fugindo um pouco do contexto de curiosidades, que tal embarcar em um conto levemente bizarro?
As gotas da chuva pareciam cortar meu corpo conforme caiam sobre mim. Eu estava desacordada num ambiente úmido. O chão abaixo do meu corpo estava duro, e só conseguia me lembrar de que certamente deitei em minha cama antes de pegar no sono.
As gotas da chuva pareciam cortar meu corpo conforme caiam sobre mim. Eu estava desacordada num ambiente úmido. O chão abaixo do meu corpo estava duro, e só conseguia me lembrar de que certamente deitei em minha cama antes de pegar no sono.
O dia no hospital tinha sido intenso e a única coisa que eu queria era uma noite tranqüila para descansar. Uma cirurgia de grande risco estava em minhas mãos no dia seguinte, e precisava estar concentrada.
Tentei me mover por diversas vezes e foram todas em vão. Meus braços estavam atados para trás com correntes finas, mas bem fortes. Quase não sentia minhas pernas. Tentei abrir os olhos e não consegui. Algo muito pesado impedia de mover qualquer parte do corpo. Comecei a ouvir apenas uma voz distante. Uma voz bem familiar.
“A dor tornava-se mais forte, a chuva mais pesada e meus pensamentos mais confusos”
Não consegui discernir o que essa voz me dizia, mas estranhamente, toda vez que sussurrava algo, minha sensação de impotência aumentava. A dor tornava-se mais forte, a chuva mais pesada e meus pensamentos mais confusos. De longe ouvia o choro de um bebê desesperado. Parecia com o choro do meu filho e isso me deixou aflita. Senti lágrimas quentes correndo timidamente pelos cantos dos meus olhos enquanto eu implorava ajuda.
Ninguém parecia me ouvir, e eu não fazia idéia de onde poderia estar. Pensei em pessoas que me pudessem sequestrar, e nenhum motivo pareceu o suficiente. Há poucos anos me tornei cirurgiã neurologista de um hospital renomeado de São Paulo, mas nunca acumulei inimigos.
Risos. Ameaças. A voz distante soava mansa, outrora rancorosa. E eu não conseguia identificar ao menos uma palavra. Aquele momento era aterrorizador, o choro do bebê não parava, estava estridente. Meu peito todo foi unido em um único aperto. De desespero, implorando clemência. Eu tenho vidas para salvar! E parecia que nem mesmo conseguiria salvar a minha.
“Um riso deliberadamente familiar por trás de todo o terror”
Aquela criança chorava cada vez num tom mais alto e era mais doloroso não poder fazer nada. Até que o choro tornou-se riso. Um riso maléfico, que invadiu toda minha mente e ecoou por longos minutos. Um riso deliberadamente familiar por trás de todo o terror. Tentei gritar, correr, me soltar das correntes, e tudo em vão. Meu corpo estava amarrado. Adormecido.
A risada continuava e eu já havia me entregado. As horas que pareciam passar feito dias eram intermináveis. O riso cessou. Meu corpo foi relaxando aos poucos e pude adormecer.
“Há tempos venho tendo pesadelos, mas nunca foram tão reais quanto os de hoje”
O dia amanheceu e estranhamente despertei em minha cama. Não encontrei indícios de ter saído de casa. Lembrei cada momento daquele sonho sombrio, e meu corpo inteiro arrepiou com um calafrio que senti. Há tempos venho tendo pesadelos, mas nunca foram tão reais quanto os de hoje, me senti realmente exausta. Chequei o quarto do meu bebê e tive a certeza que tinha deixado-o na casa de minha mãe para poder trabalhar tranquilamente naquele dia.
Tomei um longo banho e as imagens do sonho faziam-se reais a cada minuto, ameaçando-me a algo. Poderia tentar interpretar, mas decidi ignorar tal ficção da minha mente. Com certeza era o nervosismo para a cirurgia de mais tarde.
Ao entrar na minha sala do hospital, localizei uma carta assinada com o mesmo sobrenome do paciente que eu eliminaria um aneurisma poucas horas depois.
O bilhete dizia: ‘Espero que tenha tido ótimos sonhos, pois não estou tendo. E se não sair vivo da mesa de cirurgia, serei o seu pior pesadelo para sempre’.
Nesse minuto, todos os terrores supostamente fictícios voltaram a me assombrar. Seria possível ele ter controlado todos os meus pesadelos? Há algumas semanas, quando ele deu entrada no hospital procurando por mim, ouvi boatos de que era um famoso ilusionista, mas sempre pareceu normal para mim. Lembrei eventuais conversas com amigos que o vinham visitar, e a risada dele ecoou de longe em minha mente. E era a mesma risada que ouvi durante o sono. Não era possível que ele pudesse me dominar dessa maneira.
Achei que tudo fosse uma brincadeira de mau gosto e ignorei. Mas de uma coisa eu tive certeza: eu não passaria de uma fracassada médica caso falhasse com ele.
Em breve posto a segunda parte com a continuação! Aguardem ;)