quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O Esquadrão da Morte - Parte II - "Eu matei Lucio Flávio"



Lembra daquele montão de críticas mal-humoradas acusando "Tropa de Elite" de fascista e racionário na época do seu lançamento? Pois os autores destas críticas certamente ficariam de cabelos em pé vendo EU MATEI LÚCIO FLÁVIO, um filme policial de 1979 (portanto quase 30 anos antes do Capitão Nascimento e sua trupe colocarem favelados no saco). 

Dirigido por Antonio Calmon, que hoje comanda inofensivas novelas para a Globo, este provavelmente é o filme mais fascista, amoral e sádico da história do cinema brasileiro - e, ironicamente, também uma das nossas obras-primas esquecidas.


Duvida? Pois a coisa já começa nos créditos iniciais: enquanto os nomes dos atores se desenrolam sobre uma tela preta, ao fundo escutamos o som do que seria um dia de treinamento da polícia carioca. O comandante, exaltado, inicia um discurso de arrepiar defensores dos direitos humanos: "A primeira coisa que vocês têm que aprender é que isso aqui é uma guerra. A polícia é a protetora da sociedade! O marginal não existe. O marginal não é gente! Agora eu quero todos vocês repetindo comigo... E repitam com ódio!!! (som do batalhão berrando "O marginal não existe. O marginal não é gente!"). A nossa farda existe para acabar com eles, como vocês vão fazer aqui e agora: NA PORRADA... ATÉ MATAR!!!".

Ainda está em dúvida? Então saiba que EU MATEI LÚCIO FLÁVIO é a dramatização de uma história real: a vida do policial Mariel Mariscotte de Mattos, que no filme é interpretado por Jece Valadão (seguramente, o ator mais foda do cinema brasileiro de todos os tempos), e que teria sido o responsável direto pela morte de um bandido famoso na crônica policial carioca dos anos 60, o boa-pinta Lúcio Flávio Villar Lírio. 



A vida deste criminoso já havia gerado um outro clássico em 1977, "Lúcio Flávio - O Passageiro da Agonia", de Hector Babenco, onde Lúcio foi interpretado por Reginaldo Faria. Entretanto, como 99% dos filmes policiais brasileiros, "Lúcio Flávio..." preferia dar destaque à trajetória do bandido. 

Assim, EU MATEI LÚCIO FLÁVIO surgiu como um contraponto, uma resposta à obra de Babenco, focando os holofotes sobre os policiais que caçaram o criminoso, principalmente Mariel Mariscotte. Astro e também produtor do filme, Jece era amigo do verdadeiro Mariel, e assumiu a bronca de mostrar "o outro lado" do filme do Babenco. Pessoalmente, prefiro esta "resposta" ao original do que a dramatização da vida do bandido.

O roteiro de Alberto Magno e Leopoldo Serran começa contando a trajetória de Mariel, desde sua juventude como salva-vidas e leão de chácara num inferninho (ou "diretor de disciplina", como ele explica antes de surrar três caras que estavam passando dos limites), até sua entrada na polícia e o convite para atuar como guarda-costas de políticos corruptos. 

Como o Rio de Janeiro da época estava completamente dominado pela alta criminalidade (não muito diferente de hoje, no caso), a polícia resolve criar uma tropa de elite formada por 12 policiais excepcionais, chamados "Homens de Ouro", com carta-branca para caçar e matar bandidos perigosos, escapando impunemente da burocracia dos tribunais. 

Logo Mariel, que já vinha chamando a atenção pelo seu estilo truculento de não fazer prisioneiros, é chamado para integrar o grupo. E corpos crivados de balas começam a aparecer pelas ruas, com cartazes trazendo o desenho de uma caveira, o logotipo do Esquadrão da Morte e ameaças a outros bandidos. Finalmente, nosso "herói" declara guerra ao bandido que vem dominando as manchetes dos jornais: Lúcio Flávio (aqui interpretado por Paulo Ramos).

Talvez o grande problema de EU MATEI LÚCIO FLÁVIO seja o roteiro extremamente fragmentado e pouco explicativo. Na época do lançamento (1979), provavelmente os fatos da crônica policial ainda estavam fresquinhos na mente do espectador, e o próprio Mariel Mariscotte ainda estava vivo e, diz a lenda, aprovou a interpretação de Jece, inclusive presenteando-o com a medalhinha (com desenho de caveira!) que o ator usa no filme. 

Hoje, entretanto, pouca gente lembra de Mariel e mesmo de Lúcio Flávio, e o filme não se preocupa em dar muitas explicações sobre aquela época, forçando o espectador a pesquisar por conta própria.

Só assim você descobre que a representação de Mariel no filme não é nada exagerada: durante seu período áureo, o policial linha-dura era exatamente como o herói personificado por Jece, sempre nas manchetes de jornais ou no noticiário da TV, acompanhado de atrizes, modelos e das mulheres mais bonitas daquela época. 

Mariel seria assassinado numa emboscada apenas dois anos depois do lançamento do filme, em 1981, e logo caiu no esquecimento - ironicamente, como seu arquiinimigo Lúcio Flávio.

E embora o filme de Calmon mostre Mariel como um sujeito sangue-frio, que não hesita em encher bandidos de tiros ao invés de prendê-los, a caracterização de Jece é tão boa, cheia de frases antológicas e aquele ar de machão que só o ator conseguia fazer, que torna-se impossível não ficar do lado de Mariel - mesmo que o filme de Babenco, lançado anos antes, tenha tentado transformar Lúcio Flávio numa figura mais simpática que os policiais que o perseguiam. 

É um fenômeno semelhante ao que ocorreu recentemente com o truculento Capitão Nascimento de "Tropa de Elite", que a platéia adotou como herói ao invés de repreender suas atitudes. A diferença é que Nascimento não ia durar cinco minutos num confronto com o Mariel de Jece: enquanto o capitão interpretado por Wagner Moura não pegava ninguém, e ainda era pau-mandado da esposa no filme de José Padilha, o policial de Jece come umas 10 mulheres ao longo do filme!!!

Curiosamente, embora tenha vários "casos" e até uma namorada oficial, Mariel vive uma relação de amor e ódio com Margarida Maria (a bela Monique Lafond), uma prostituta viciada em heroína. O policial prometeu ao pai suicida da moça que a salvaria da vida perdida que ela levava. Infelizmente, não consegue cumprir a promessa: quando Margarida Maria morre de overdose, e Mariel fica sabendo que irão enterrá-la como indigente por não ter outros familiares vivos, nosso herói intercepta a ambulância do IML e "rouba" o cadáver nu da amada, saindo com ele nos braços enquanto brada: "Vão enterrar como indigente a mãe de vocês!".

EU MATEI LÚCIO FLÁVIO mostra Mariel Mariscotte como um sujeito extremamente vaidoso, egocêntrico até, que anda sempre alinhado em terninhos brancos, duas vezes aparece transando com mulheres enquanto se olha no espelho (numa delas, chega a dizer para o próprio reflexo: "Mariel, você é o maior"!!!), e adorava os flashes e as manchetes dos jornais (em outra cena impagável, ele "ajeita" o cadáver de um bandido que acabou de fuzilar para que saia mais bonito nos jornais!). Logo fica claro que seu motivo para caçar e matar Lúcio Flávio é mais pelo "status" que isso representa à sua carreira do que por idealismo profissional.

É óbvio que o filme não pode nem deve ser visto com um olhar contemporâneo. Entretanto, para quem concorda com aquela máxima de que "bandido bom é bandido morto", EU MATEI LÚCIO FLÁVIO tem cenas lindas no seu exagero e brutalidade. 

Uma delas é o assalto a uma farmácia, quando três marginais (liderados por um jovem André di Biasi, aquele da "Armação Ilimitada") provocam o caos em busca de anfetaminas. Um deles leva a balconista (uma jovem Maria Zilda) para os fundos da loja e a estupra violentamente, enfiando o revólver inteiro na vagina da moça! 


Finalmente, surgem os defensores da lei e da ordem, Mariel e seu fiel companheiro interpretado pelo fantástico Anselmo Vasconcellos. Pois a dupla simplesmente entra no lugar dando tiro pra todo lado - é um verdadeiro milagre não matarem também os proprietários do estabelecimento. 

Quando Anselmo dá o golpe de misericórdia em um dos criminosos, atirando à queima-roupa, o sujeito cospe sangue no rosto do policial. Mariel, sorrindo, ainda faz escárnio: "O malandro vomitou sangue, é?".


Por essas e por outras, EU MATEI LÚCIO FLÁVIO é, definitivamente, um filme para pessoas com estômago forte. O que nos leva à cena mais clássica e "politicamente incorreta", aquela que faz de "Tropa de Elite" uma produção dos Estúdios Disney: Vasconcellos coloca um disco de Roberto Carlos na vitrola e tortura um bandido no pau-de-arara, com choques elétricos, ao som do clássico "Lady Laura". 

E enquanto o sujeito esperneia, a música cria um curioso contraponto às imagens brutais: "Tenho às vezes vontade de ser/Novamente um menino/E na hora do meu desespero/Gritar por você/Te pedir que me abrace/E me leve de volta pra casa". Finalmente, após enjoar da tortura, Anselmo se aproxima do sujeito todo quebrado, com marcas de tortura pelo corpo inteiro, e exclama sem qualquer emoção: "Marginal tem mais é que morrer...", antes de apunhalar o homem até a morte! Lindo.

Outra cena antológica coloca Mariel e Lúcio Flávio frente a frente, numa das muitas rápidas passagens do bandido pela cadeia. O diálogo entre os dois, repleto de raiva, me lembrou um encontro entre o Batman e o Coringa na HQ "A Piada Mortal" (escrita por Alan Moore), quando o Homem-Morcego tentava convencer seu inimigo de que, se continuassem duelando daquele jeito, mais cedo ou mais tarde um dos dois terminaria morto. Só que a conversa no filme é menos amena. Quando Lúcio provoca o policial, dizendo "O fato de eu estar aqui não significa que a luta acabou. Guerra é guerra!", Mariel responde seco: "Ô Lúcio, vai pra puta que te pariu!".

Como um daqueles raros filmes que defende (sem restrições) o trabalho da polícia, mesmo quando este é levado às últimas conseqüências, EU MATEI LÚCIO FLÁVIO retrata uma saudosa época em que, quando um policial matava um bandido, aparecia na capa dos jornais, era condecorado pelos seus superiores e elogiado pelos políticos na televisão (hoje, provavelmente, o mesmo policial seria processado por usar "força excessiva"). 

É claro que o Esquadrão da Morte que Mariel integrava passou bastante dos limites aceitáveis, o que fica evidente na cena que Vasconcellos pendura o cadáver de um bandido torturado em frente a uma estátua de São Sebastião (aquele com o corpo crivado de flechas), numa "cópia humana" da imagem. Quando Mariel vê o trabalho, ainda elogia: "Mas que obra-prima, hein?".

A dupla Jece/Vasconcellos brilha no filme, e o fato de Anselmo hoje ser mais lembrado como humorista do quadro fixo do "Zorra Total" do que como o grande ator que é soma-se à cada vez mais longa lista de injustiças do cinema brasileiro (lembrando sempre que Anselmo também interpretou a única múmia do nosso cinema, em "O Segredo da Múmia"!!!). 

O filme tem ainda uma pequena participação de Otávio Augusto como instrutor dos cadetes na academia de polícia. Com seu jeito bonachão, ele tem um diálogo impagável em que orienta os policiais a atirarem na cabeça, no coração e no saco dos seus alvos! Jece e ele fariam dupla no filme posterior de Calmon, o impagável "O Torturador", já resenhado aqui.

Acabei me estendendo demais, mas é justamente porque EU MATEI LÚCIO FLÁVIO é uma daquelas muitas obras-primas esquecidas da nossa filmografia tupiniquim. Inclusive recomendo a todos que leiam a excelente resenha da Andrea Ormond no blog Estranho Encontro, pois praticamente tudo que eu queria dizer está escrito lá (e não foi fácil conseguir escrever um texto diferente do dela!). 

Só sei que, depois de ter encarado "O Torturador" e EU MATEI LÚCIO FLÁVIO num curtíssimo espaço de tempo, estou começando a achar que o Antonio Calmon era o "Tarantino brasileiro", antes mesmo do Tarantino começar a fazer filmes!

Diálogos espirituosos? Confere. Atores "cool"? Confere. Violência e humor negro? Confere. Trilha sonora bizarra? Confere (com direito, além de Roberto Carlos, a "A Divina Comédia Humana", de Belchior, "As Rosas Não Falam", na voz de Fagner, e disco music). Citações à cultura pop em geral? Confere! Em EU MATEI LÚCIO FLÁVIO, por exemplo, a casa de Mariel tem um pôster de Clint Eastwood em "Três Homens em Conflito", Monique Lafond deita-se nua sobre um lençol vermelho imitando aquela clássica foto da Marilyn Monroe (veja abaixo), e a cena da tortura ao som de música pop lembra diretamente o posterior "Cães de Aluguel"!

Além disso, só mesmo num filme do Calmon (ou do Tarantino lá no norte...) você vai ver um policial, inspirado no personagem real Milton Le-Cocq, falar "Salve a Umbanda. Entrego minha alma aos homens da encruzilhada!", antes de cair fulminado com um tiro na cabeça. E ainda tem gente que acha que HOJE é que o cinema brasileiro está interessante... Povo sem memória e sem cultura é fogo!

PS: Outro filme que aborda o Esquadrão da Morte que limpou o crime do Rio de Janeiro dos anos 70 é "República dos Assassinos", de Miguel Faria Júnior, que ironicamente foi lançado no mesmo ano de EU MATEI LÚCIO FLÁVIO, e tem Tarcísio Meira, Sandra Bréa e, surpresa!, Anselmo Vasconcellos nos papéis principais. Ainda não consegui encontrar este para ver, mas quem já viu jura que é outro clássico.


Hey povinho! Este filme também está disponível no youtube, segue abaixo


Espero que gostem!